TERMINALIDADE DA VIDA E A RESOLUÇÃO DO CFM
(Matéria publicada na Folha Espírita em janeiro de 2007)
Gilson Luís Roberto é presidente da Associação Médico-Espírita do Rio Grande do Sul (AME-RS)
Em 9 de novembro de 2006 o Conselho
Federal de Medicina (CFM) instituiu resolução, publicada no Diário Oficial da
União do dia 28 do mesmo mês, sobre a terminalidade da vida. Ela aponta que “na
fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar
ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente,
garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao
sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do
paciente ou de seu representante legal”. (Veja a resolução na íntegra no
site do CFM www.portalmedico.org.br)
No entanto, o Ministério Público Federal, através da Procuradoria da República
no Distrito Federal, determinou ao Conselho Federal de Medicina a revogação da
resolução, por entender que a medida é “uma afronta ao direito à vida” e
constitui “incitação e apologia ao homicídio”, ameaçando entrar com uma ação
civil pública na Justiça Federal caso o CFM não atenda à recomendação.
O Ministério Público Federal lembra que a ortotanásia, assim como a eutanásia,
ainda é considerada homicídio pelo Código Penal Brasileiro e que o direito à
vida está assegurado na Constituição Federal. “Considerando a indisponibilidade
do direito à vida, sendo penalizado até o auxílio ao suicídio, inadmissível que
se deixe ao alvedrio de médicos, parentes ou do próprio doente abreviar a vida (praticar
homicídio), a pretexto de deixar o doente morrer no tempo adequado”, sustenta o
procurador regional dos Direitos do Cidadão Wellington Marques de Oliveira.
Na verdade, o que se observa é que a Medicina e o meio jurídico têm
compreensões e definições diferentes na utilização do termo ortotanásia.
Enquanto na Medicina está relacionado à sua semântica, em que o prefixo
grego orto significa “correto” e thanatos,
“morte”, exprimindo morte no momento certo, sem abreviação da vida (eutanásia
ativa e passiva) e nem prolongamentos desproporcionados do processo de morrer
(distanásia), no meio jurídico ela é entendida como eutanásia passiva, ou seja,
a suspensão dos recursos indispensáveis à manutenção da vida, sejam eles
medicamentosos ou tecnológicos.
No meio dessa discussão estão os pacientes, que ficam perdidos com tantos
conceitos confusos e interpretações particularizadas.
A situação se apresenta da seguinte forma: de um lado temos a eutanásia, que
pode ser ativa (uso de algum método para abreviar a vida) ou passiva (deixar de
utilizar ou suspender o suporte que mantém a vida), como sendo uma forma de
provocar a morte e evitar o “sofrimento” do paciente, e no outro extremo temos
o seu oposto, a distanásia, que seria o prolongamento da vida de forma desmedida
com recursos que não conseguem evitar a morte, apenas provocam uma agonia
prolongada, com sofrimentos físicos e/ou psicológicos ao paciente.
No primeiro caso, encontramos um desrespeito pela vida e uma insubmissão aos
desígnios divinos através da fuga das experiências necessárias ao nosso
ajustamento espiritual, acreditando que a morte significa o cessar da vida, sem
considerar a dimensão espiritual e as conseqüências dolorosas geradas por essa
atitude. Não entendendo o propósito profundo da existência, creem que a vida
serve apenas para gozar, sendo a morte a solução final diante do desespero e do
despreparo diante do sofrimento e do desencarne. No segundo caso, a morte é um
mal que deve ser superado a qualquer preço. É o exagero no sentido oposto como
consequência do medo aterrorizante perante a inevitabilidade da morte física, a
única certeza absoluta da existência humana.
Ambas as atitudes representam o desconhecimento da vida espiritual com as suas
leis e demonstram uma falta da sensibilidade que transforma o médico em apenas
um técnico de saúde.
A morte é algo natural e não se justifica a sua recusa absoluta. Há um momento
a partir do qual as tentativas de curar podem deixar de demonstrar compaixão ou
de fazer sentido sob o ponto de vista médico. Isso não significa que o paciente
ficará sem assistência médica, pelo contrário, o esforço deve ser posto em
tornar o tempo de vida que reste ao doente o melhor possível, aliviando as
dores e outros sintomas que o incomodam, além de oferecer todo o apoio humano,
psicológico e espiritual, tanto por pessoal especializado como pelos
familiares. Esses cuidados designam-se por cuidados paliativos e devem
favorecer aos pacientes uma morte digna, amparados pela família e amigos. É
muito triste ver os pacientes morrendo nas UTIs longe dos seus, sem o conforto
das palavras amigas e dos recursos das preces e das leituras edificantes junto
ao leito. Precisamos refletir muito sobre a necessidade da humanização da morte
e do morrer.
‘Defendemos a morte no momento certo’
A Associação Médico-Espírita do
Brasil, através da Carta de São Paulo – 2005, coloca-se totalmente contrária a
qualquer tipo de eutanásia, seja ela ativa ou passiva, mas também não concorda
com a obstinação terapêutica que nenhum benefício produz ao paciente e que
geralmente inflige mais sofrimento provocando a distanásia. Somos favoráveis à
morte no momento certo, que se anuncia iminente e inevitável, como processo
natural da condição humana, renunciando ao chamado excesso terapêutico, que
somente provocaria um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo,
deixar de oferecer aos pacientes a atenção médica e os cuidados paliativos.
Somos contrários ao uso do termo ortotanásia, utilizado de forma distinta entre
o Judiciário e a Medicina, dando margem à confusão com a eutanásia passiva.
Entendemos que, através da resolução sobre a terminalidade da vida, o Conselho
Federal de Medicina está buscando a humanização da morte, evitando os
prolongamentos abusivos com aplicações de meios desproporcionados que imporiam
sofrimentos adicionais aos pacientes. Mas, para que essa resolução alcance esse
objetivo, algumas considerações precisam ser analisadas e respondidas.
Discussão
Primeiramente, tem faltado ao CFM uma
discussão ampla com a própria classe médica e com os representantes da
sociedade sobre os assuntos que são extremantes, complexos e delicados, com
implicações éticas graves. Não é aceitável, numa sociedade democrática, que
alguns poucos médicos definam o pensamento de uma classe, com repercussões
técnicas e morais profundas, sem uma discussão mais ampla e rigorosa.
Resoluções essas que muitas vezes ferem o próprio objetivo do Conselho Federal
de Medicina que é a defesa da ética e da vida.
A resolução não define quais as situações e os critérios clínicos para o
diagnóstico e a constatação da terminalidade da vida, dando margem para que
cada médico defina esse conceito de conformidade com a sua experiência e
conhecimento técnico, favorecendo dessa forma a prática da eutanásia passiva na
falta de segurança desses critérios. Ela também não define quais os
procedimentos técnicos e paliativos fundamentais que devem ser assegurados nos
casos da terminalidade da vida e não assegura que esses procedimentos vão ser
aplicados com o mesmo critério para os pacientes particulares, conveniados ou
do SUS. E deixa ainda a desejar quanto à clareza de conceituação e da sua
aplicabilidade, não existindo um sistema que evite a prática de abusos.
Portanto, ainda há muito para se discutir antes de se avançar nessa proposta.
Precisamos promover discussões capazes de deixar muito bem definidas as
situações clínicas, eticamente compatíveis com o abandono da terapêutica, o que
não deve implicar no abandono dos cuidados médicos e humanos básicos para
conforto e segurança do paciente.
Médicos despreparados
É necessário um maior preparo dos
médicos para lidar com a morte, que, diante da inevitabilidade desta,
geralmente não permanecem ao lado do paciente terminal, deixando-o aos cuidados
da enfermagem nos derradeiros momentos de agonia. Daí a necessidade urgente das
universidades favorecerem a criação de cadeiras de Medicina e Espiritualidade,
resgatando a visão de totalidade do indivíduo e superando a ênfase atual no
desenvolvimento da tecnologia em detrimento ao ser humano, dentro de um
paradigma comercial empresarial da Medicina.
É fundamental expandirmos o conceito de cuidados paliativos dentro
da área médica, onde o cuidar é mais importante que curar, buscando oferecer
mais atenção ao doente do que à doença e medidas de conforto com alívio do
sofrimento. Não está se falando aqui em omissão de recursos necessários, o que
poderia deixar a impressão de uma eutanásia passiva. O foco está em não serem
utilizadas medidas desnecessárias que visam apenas impedir a morte a todo custo
e por todos os meios, sem outro objetivo além de, precisamente, prolongar a
vida.
Lembro aqui da contribuição do dr. Carlos Roberto de Souza, da Associação
Médico-Espírita de Campina Grande (PB), que apresentou um belo trabalho no
Mednesp 2005, em São Paulo (SP), quanto ao morrer dignamente:
O que é morrer dignamente
1. Morrer sem dor (analgesia), sem
sofrimento e na hora certa.
2. Morrer na presença de uma pessoa de estima (familiar ou amigo).
3. Morrer onde queira morrer (na sua família, por exemplo).
4. Apoio psicológico ou religioso.
5. Não ser abandonado.
6. Participar tanto quanto possível das decisões dos cuidados.
Em relação à eutanásia, distanásia e à morte natural
Manifestamo-nos:
1) Contrariamente a qualquer meio intencional que antecipe a morte natural
do ser humano, seja pela eutanásia, ativa ou passiva, ou pelo suicídio
assistido.
2) Contrariamente à distanásia, por entendermos tratar-se de um
prolongamento inútil da vida, por uma obstinação terapêutica ou diagnóstica,
através de meios artificiais que não trazem benefícios imediatos ao paciente,
levando-o a uma morte agoniada, com muito sofrimento orgânico, psíquico e
espiritual.
3) Favoravelmente à ocorrência da morte natural, a que se dá no tempo certo.
Compete-nos respeitar a autonomia do paciente – suas crenças, medos, desejos e
esperanças –, oferecendo-lhe apoio médico, psicológico, religioso e familiar,
que lhe possibilite morrer sem dor e viver, com dignidade, seus últimos
instantes de vida terrena. Compreendemos o processo do morrer como uma fase
importante para o aperfeiçoamento do espírito, repleto de experiências
enriquecedoras, tanto para o médico quanto para o paciente, sobretudo, quando
ambos têm os olhos voltados para a realidade da vida imortal.
(Carta de Princípios, estabelecida no V Congresso Médico-Espírita – Mednesp – 28/5/2005).